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Aug 13, 2018 54 tweets 12 min read Read on X
Aproveitar o momento drástico e as iniciativas fantásticas que tenho visto e fazer uma das coisas que eu mais amo: falar sobre minha pesquisa.
E se fundamenta no estudo dos Sistemas Dinâmicos Não-Lineares, mas o apelido é mais legal e mais conhecido: Teoria do Caos.
Então essa é a minha contribuição pro #AstroThreadBR.
Mas primeiramente: o que é caos?
Tudo é caos, né. O trânsito é caótico, as relações humanas são caóticas, a política é caótica. A gente ouve sobre caos todos os dias, mas "caos" é uma das palavras mais injustiçadas que tem!
Um sistema dito "caótico" nada mais é do que aquele que tem uma sensibilidade às condições iniciais. Isso parece muito simples, mas as consequências dessa definição vão além da nossa vã fiolosofia.
Um clássico e fundamental exemplo de sistema caótico é o sistema solar.
Em um modelo simplificado, podemos considerar apenas o Sol, a Terra e a Lua. Tudo certo por aqui, não é? Há milênios já temos uma noção da movimentação destes três corpos um com relação ao outro. Mas a história não é tão certa assim. Este é o Problema dos Três Corpos.
O Problema dos Três corpos deve ser, provavelmente, um dos problemas mais emblemáticos da física e da matemática de todos os tempos. Por séculos os maiores matemáticos e físicos do mundo se debruçaram sobre o problema, a partir das equações de Kepler pras órbitas dos planetas.
No modelo matemático de Kepler -- os planetas estão em uma órbita elíptica ao redor do Sol --, sabendo-se a forma da órbita de um planeta, seria possível saber onde ela estaria nesta órbita para qualquer momento do tempo. Poderia ser amanhã, mês que vem ou em mil anos.
Mas Newton postulou, em sua lei da gravidade, algo fundamental para isso: Cada planeta exerce uma força um no outro, sendo esta força recíproca. Ou seja: A terra está sob influência gravitacional do Sol. Assim como marte. Mas a terra e marte também fazem força no sol.
Como o Sol é muito mais pesado que os planetas, ele quase não "sente" essa força. No entanto, marte TAMBÉM age gravitacionalmente sobre a terra e vice versa. Ou seja: todos os objetos do sistema -- neste caso, o sistema solar -- exercem uma força em todos os outros.
Isso é o que chamamos de uma PERTURBAÇÃO, que é um conceito fundamental cuja importância eu logo vou explicar melhor.
Enfim: ficou tudo mais complicado.
Não era mais tão trivial prever as órbitas dos planetas. Inlusive, o problema mais simples possível, o de três corpos...
já era de difícil abordagem porque todas as equações de movimento para cada um dos corpos dependeria dos resultados das equações dos outros corpos. Imagine-se, então, para o sistema solar, com seus planetas, asteróides e outros corpos?!
O que se descobriu foi que estas forças de um planeta no outro acabavam, com o tempo, destruindo a regularidade das órbitas. Ou descaracterizando elas, de modo que a previsibilidade de cada uma das órbitas ficaria comprometida. Estas perturbações tem efeitos DOIDOS no sistema.
Alguns séculos depois, os matemáticos franceses Lagrange e Laplace -- que poderiam muito bem ser uma dupla sertaneja -- fizeram contribuições fundamentais para o problema, iniciando a sistematização da matemática por trás destas perturbações.
Com estes dois cabeçudos, começaram a surgir ferramentas matemáticas com as quais abordar o problema dos três corpos e as perturbações. Estas ferramentas se baseavam em métodos _aproximativos_. O problema é simplificado de modo a podermos trabalhar com aproximações.
E assim são as ferramentas para se tratar estas perturbações: aproximações. Quanto mais complexa e completa a aproximação, mais difícil a resolução do problema. No entanto, mais precisos serão os cálculos e os resultados obtidos. Bem como o contrário:
Aproximações não tão complexas são mais fáceis de se calcular, mas a precisão dos resultados fica comprometida. Assim, seria possível escolher a ordem de precisão dos resultados obtidos.
Mas quanto mais simples, melhor, certo? A princípio, sim.E os físicos da época pensavam isso
No entanto, na segunda metade do século 19, Urbain Le Verrier, um astrônomo francês estava observando Urano, percebeu que este planeta estava se movimentando, no céu, de um jeito meio estranho. Diferente da previsão. Assim, ele atribuiu essa movimentação estranha a...
uma perturbação de outro planeta. Mas essa perturbação não poderia ser por conta de saturno, de acordo com suas contas. Ela parecia ser de outro planeta, desconhecido. Assim, utilizando-se apenas de matemática -- e de termos perturbativos de ordem maior --, Le Verrier...
Chegou à conclusão de que de fato a movimentação esquisita de Urano era por causa de um outro planeta.
Chegou, também, à possível órbita deste planeta ao redor do Sol.
E previu onde ele estaria nos próximos dias.
Ao apontar o telescópio naquela direção, descobriu Netuno.
Sim, Netuno foi descoberto utilizando-se única e exclusivamente matemática. E detalhes que os físicos e matemáticos da época preferiam ignorar por simplicidade: os termos de alta ordem nas aproximações para as perturbações. Aquilo que "só servia pra complicar".
Com Le Verrier, percebeu-se, também, que o cálculo das órbitas dos planetas por períodos de tempo muito adiante seria impossível, a não ser que se complicasse ao máximo as aproximações das perturbações.
O astrônomo postulou, inclusive, que mesmo assim a qualidade destas previsões dependeria das condições iniciais escolhidas para se realizar os cálculos.
As coisas estavam começando a tomar forma. Ou melhor, começando a perder a forma que tinham.
Mas foi em 1892 que o bagulho ficou louco.
E a culpa disso tem nome: Henri Poincaré.
##
Eu vou fazer uma pausa aqui pra falar desse homem que eu amo e é meu cientista preferido junto do Liev Landau.
Poincaré ficou conhecido por ter feito contribuições relevantes em absolutamente TODAS as áreas da matemática e da física existentes até então -- e por ter feito previsões sobre algumas outras, como a mecânica quântica, a relatividade geral de einstein e mais algumas coisas.
E, ah! Poincaré, no final do século 19, já fazia divulgação científica. Acreditava ser fundamental dividir o conhecimento com as massas, publicando inúmeros ensaios e livros sobre tópicos de física e matemática (muitos traduzidos aqui no brasil. Recomendo "Ensaios Fundamentais"!)
Rapaz, esse negócio vai ficar grande, mas juro que é legal.
Enfim.
Enfim, voltando ao tópico: Poincaré, em 1892, decidiu abordar o problema dos três corpos com métodos matemáticos mais sofisticados e mais recentes.
Depois de uma quantidade apreciável de matemática (foram 1100 páginas e três livros), Poincaré concluiu: para sistemas com três ou mais coorpos interagentes entre si, é impossível calcular indefinidamente -- no tempo -- as soluções das equações de movimento dos corpos.
A previsão das órbitas dos planetas, por melhores que sejam os métodos aproximativos para as perturbações, não podem se estender para sempre. A partir de certo ponto, não existem mais soluções exatas, apenas conjecturas.
Haviam exceções, claro, mas advindas de outras simplificações. Por exemplo para órbitas circulares, massas pequenas. Casos particulares -- condições iniciais particulares.
Poincaré é tido como o pai da teoria do caos e seus desenvolvimentos são utilizados até hoje.
E, infelizmente, foi uma área que nasceu agonizando.
Foi fundamental porque percebemos que os detalhes são importantes. Aproximações e termos de ordem superior são fundamentais pra descrever com mais precisão a natureza. Estes detalhes escondem muitas maravilhas.
Mas o problema é que tudo foi ficando muito complexo. Frequentemente os astrônomos (e físicos em geral também, pois descobriram que o caos não era algo exclusivo de sistemas planetários) chegavam a equações que não eram solucionáveis pelos métodos clássicos, "na mão".
então parecia bastante contraproducente obter equações mais precisas porém sem solução, certo? Pois é.
Felizmente o desenvolvimento científico e tecnológico não pode parar -- e não parou -- e assim obtivemos novas ferramentas e auxílios. O mais importante deles foi ele mesmo:
o computador. Porque, com um computador, podemos ao menos aproximar as soluções das equações. Desenvolvemos, também, algoritmos que nos retornam os resultados com precisões fantásticas. E, acima de tudo, com computadores podemos fazer inúmeros cálculos de imensa complexidade.
Tudo isso em períodos de tempo que beiram o ridículo. O IAG-USP, por exemplo, tem um super-computador que é utilizado exclusivamente para realização de cálculos matemáticos e descoberta de soluções para equações de difícil resolução, muitas na área do Caos.
Mas beleza. Computadores. Show. A gente pode ver série, ouvir música, procurar vídeos de gatinhos e calcular a evolução temporal do sistema solar com uma precisão ridícula por até bilhões de anos no futuro. Mas isso só ficou claro na década de 60 com Edward Lorenz.
Lorenz era um meteorologista de quem você provavelmente nunca ouviu falar, mas de quem com certeza já ouviu um termo: Efeito Borboleta.
"o bater de asas de uma borboleta no Brasil pode ocasionar um tufão na China".
Lorenz pesquisava um modelo de previsão do tempo.
E, pra estudar com mais dinamismo este modelo, utilizava de um computador para realizar os cálculos e obter as soluções das equações que estudava. Até aí, tudo bem.
O diferencial disso tudo ocorreu quando ele foi digitar os dados de entrada do programa.
Em um dos estudos, um dos dados de entrada era 0.506127. Lorenz, para esta entrada, obteve um resultado para o desenvolvimento das equações.
Movido por um pouco de desleixo -- cientista também é gente e às vezes fica cansado, vai --, repetiu os cálculos comm o valor 0.506.
Uma diferença mínima, de menos de 0.01% do valor inicial. No entando, depois de um tempo, ele percebeu que os resultados -- inicialmente idênticos -- começaram a sair desastrosamente diferentes entre si. Bem parecido com o gif do pêndulo duplo que coloquei no começo da thread.
Suas equações eram um sistema claramente dependente das condições iniciais escolhidas. Uma mínima diferença no valor inicial poderia, depois de um tempo, representar, no fim, um resultado completamente diferente.
Poderia ser algo bem definido ou completamente aleatório.
E, olha aí, a primeira consequência do caos no dia-a-dia: é por isso que a previsão do tempo para amanhã é muito mais precisa que para depois de amanhã, que, por sua vez, é muito mais precisa que para daqui uma semana. Nós temos as condições do ambiente bem definidas para hoje.
No entanto, pode ser que, amanhã, haja uma pequena diferença com relação ao previsto. E estas pequenas diferenças vão se somando, até que uma previsão de domingo ensolarado termine em um feriado frustrado na praia porque choveu o fim de semana inteiro.
AGORA SIM eu posso falar da minha pesquisa: eu tabalho com o desenvolvimento de ferramentas para detecção de caos. E o computador é o meu melhor amigo nessas horas. O que eu faço é obter soluções para um dado sistema de equações para inúmeras condições iniciais diferentes.
Depois eu aplico a ferramenta de detecção de caos nestas soluções e verifico, por um modelo matemático, se aquela solução é caótica ou não. Aqui são alguns exemplos do que fiz recentemente para um modelo matemático bastante simples:
Cada linha de cada um destes gráficos corresponde à solução das equações para um conjunto de condições iniciais específico. O esquema de cores indica quais destes conjuntos de condições iniciais resultaram em uma solução regular e quais resultaram em soluções caóticas (amarelo)
No segundo gráfico dá pra ver, inclusive, a tal da dependências com relação às condições iniciais: a zona em amarela -- altamente caótica -- cerca uma zona de domínio regular. Se a condição inicial for minimamente diferente, a solução já pode ser completamente diferente.
Zonas de domínio regular são intimamente relacionadas às zonas de domíniio caótico. O que eu tenho estudado é um modelo matemático bastante simplificado (mas com importantes desdobramentos e usos no nosso mundo físico), mas eles tem propriedades interessantíssimas.
E estas ferramentas que eu uso e desenvolvo podem ser usado pra qualquer sistema matemático. A minha orientadora, por exemplo, utilizou algo parecido para descobrir que o nosso sistema solar está numa zona especialmente estável e segura na galáxia, possivelmente propícia à vida.
Mas o mais interessante do nascimento da teoria do caos consiste no seguinte: tivemos de rever todos os nossos modelos matemáticos para basicamente tudo. Em uma escala maior ou menor, fenômenos caóticos estão presentes em absolutamente toda a natureza. Em maior ou menos grau.
Tudo isso foi descoberto tentando entender como funciona o sistema solar. Mas a teoria do caos é ativamente aplicada, por exemplo, na mecânica quantica, na mecânica dos fluidos, em biologia molecular, modelos de crescimento populacional em ecologia e até em fluxos de pessoas.
Tudo isso veio de pesquisa que poderia ter sido considerada pura, inútil, sem propósito. Como se fosse uma mera curiosidade. Mas não é assim. Não existe pesquisa inútil.
Um projeto que hoje pode parecer completamente sem futuro pode vir a ter desdobramentos revolucionários.
A diferença entre a o determinismo e o mais absoluto caos não passa de um espirro, um tropecinho, um mínimo esbarrão.

Acho que é isso. No fundo essa #AstroThreadBR foi mais uma introdução histórica, mas eu me diverti. Peço perdão pelo flood.
Inclusive, eu sei que muita coisa ficou confusa/ambígua (eu mesmo vivo me perdendo em um monte de coisa nisso, é tudo CAOS) e eu me disponibilizo aqui a tentar explicar -- o que estiver ao meu alcance -- algo que alguém não entendeu. Só chegar. :^)
Vou aproveitar e recomendar pra todo mundo que acompanhe a hashtag #AstroThreadBR. Tem um monte de gente apaixonada pelo que estuda, pela natureza, gente competente, gente aqui do Brasil fazendo coisas surpreendentes e maravilhosas. A gente precisa olhar mais pros lados.
medium.com/@gabrieltxg/vi… e vou aproveitar também pra mandar outra coisa que eu gosto demais que é juntar escrita com as coisas que eu estudo.

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